O galerista, que está sentado à mesa conversando, pede licença a seu interlocutor, levanta-se da cadeira com alguma presteza e explica para a moça que, na verdade, trata-se de uma representação de Yansã, e diz que não deixa os preços à vista para incentivar que os interessados conversem com ele e troquem uma ideia sobre arte e o valor da obra. A moça, que busca especificamente uma peça de Oxum, deixa o ateliê com a amiga.
Lá fora, há alguns turistas circulando pelos paralelepípedos, portando nos braços pinturas tribais no estilo da Timbalada. Mas é o ensaio do Olodum, cujo início está previsto para uma hora depois do fechamento da galeria de Anunciação, que fez esse público chegar mais cedo ao bairro e circular pelas lojas, restaurantes, bares e galerias.
Ainda assim, a percussão dos grupos que circulam durante o dia pelas ladeiras do Centro Histórico não cai muito bem nos ouvidos do galerista, que gostaria de ver mais locais visitando o seu espaço.
“O soteropolitano está cansado de ouvir tambor o tempo todo. O Pelourinho é enraizado de percussão, só que isso agrada mais o turista”, afirma o artista, que defende uma programação diferente para os finais de semana, com fanfarras, teatro de rua, atrações infantis e outras coisas que atraiam famílias.
Apesar disso, o artista admite que os turistas, principalmente europeus, são os principais compradores de seu trabalho. “O europeu tem um apetite maior pela arte, mas os brasileiros estão começando a comprar mais. Na pandemia, tenho vendido uma quantidade interessante para brasileiros”.
Anunciação é um sonhador. Sonha com maior participação do povo na política, embora faça questão de sublinhar que não tem partido, sonha com a maior difusão de sua arte e sonha com a Rua das Laranjeiras, onde fica seu ateliê, se transformando em um corredor cultural.
Enumera as instituições presentes na rua, desde o Senac, a Associação de Capoeira de Mestre Bimba e a loja do Muzenza, e imagina uma rua com maior efervescência.
L. Folgueira diz que há falta de sintonia entre órgãos públicos
| Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE
Arte num quebra-cabeça
Desde que terminou o seu último emprego com carteira assinada, em 2014, no canteiro de obras do metrô de Salvador, Anunciação investiu firmemente no maior dos seus sonhos, que é desenhar e pintar. Conseguiu um imóvel no Pelourinho e se mantém exclusivamente de sua arte.
Mas defende que o Governo do Estado e a Prefeitura de Salvador criem bolsas de incentivo e ofereça desconto nos aluguéis de imóveis para artistas que estejam instalados ou queiram se instalar no Centro Histórico.
“Em alguns países, há artistas bolsistas. O governo paga um valor para que eles movimentem culturalmente um lugar. Não é para o resto da vida, é um incentivo para começar, comprar material”.
Naturalmente, os artistas do Pelourinho gostariam de ter sua obra igualmente conhecida e comercializada entre moradores e visitantes, mas as peculiaridades que cercam a presença dos dois públicos no Centro Histórico são um quebra-cabeça para os donos de ateliês.
Se é difícil atrair para a região a classe média baiana, pela sensação de insegurança, há queixas quanto à falta de sinalização adequada para turistas e a eterna relação conturbada com os guias de turismo, que por vezes são acusados de beneficiar alguns estabelecimentos. Farinha pouca, meu pirão primeiro, seja em dólar, euro ou real.
Por falar em pirão, a definição do público que vai sustentar o turismo e, consequentemente, o mercado de arte no Centro Histórico deve ajudar a desenvolver até o perfil dos restaurantes do bairro.
“O Pelourinho não é o dono de um restaurante que tenta imitar comida francesa. É cultura, arte, musicalidade, o jeito de ser do povo. A quantidade de gente que procura restaurantes com aqueles agdás fervendo, com as baianas, eles procuram aqui e não encontram”, afirma o artista plástico Washington Arleo, que declara estar em atrito com a Ache (Associação do Centro Histórico Empreendedor).
Dono de um ateliê nas proximidades da igreja da Ordem Terceira de São Francisco, Arleo demonstra ter um ranço de guias turísticos que, segundo ele, direcionam os visitantes de excursões para estabelecimentos que pagam maior comissão.
“Eu perdi uma venda de R$ 24 mil. O holandês estava louco pelo quadro, mas o guia disse que era meu colega e o turista achou que o quadro então não valia R$ 24 mil. Eu perdi uma venda importantíssima para botar minhas contas em dia na pandemia por causa da vaidade de um idiota”. A lógica de Arleo é que os guias devem estar a serviço do Pelourinho, ou seja, dos empreendedores de lá.
O artista considera que, da parte do poder público, os primeiros passos a serem tomados seriam a limpeza, a sinalização e a publicação de um folheto com as atrações do Centro Histórico, explicando quais são as vias seguras e as que são consideradas áreas de risco.
“Eu já tive a experiência com a filha de uma namorada que, ao chegar para me conhecer no Pelourinho, foi estacionar, dois caras pularam na frente do carro. Ela tomou um susto tão grande que teve uma crise de choro”.
Arleo também considera importante que os ônibus parem na Praça da Sé antes de estacionarem no fim de linha, o que permitiria mais segurança aos turistas: “Eu já vi gente sendo roubada com bolsa, documento com tudo, ali perto da Praça Municipal”.
“Quando o turismo acaba, acaba nosso ganha-pão”, diz Sam CG, que expõe na Faculdade de Medicina
| Foto: Felipe Iruatã | Ag. A TARDE
Quadros e desenhos
Sam CG mantém na Rua Portas do Carmo um imóvel estreito, no qual duas pessoas não podem se movimentar lado a lado no térreo, cujas paredes amontoam quadros e desenhos de sua autoria. Muitos retratos. De gente famosa, como o casal Lázaro Ramos e Thaís Araújo, e de transeuntes que se dispõem a posar por 20, 30 minutos.
Alguns voltam para buscar depois, alguns pedem que ele providencie uma moldura. Mas uma boa parte das pinturas de Sam fica exposta mesmo na rua, no muro da antiga Faculdade de Medicina da Ufba, junto a artesanato e outras manufaturas prontas para atrair a atenção de forasteiros.
Orgulhoso de ser, em suas palavras, o único artista plástico da região que mora no Pelourinho, Sam já pintou na Cantina da Lua, no imóvel de um amigo, até que em 2012 conseguiu alugar seu próprio cantinho. No andar de cima, ficam a residência e o ateliê, onde serra as molduras e pinta. “Eu vou do hiper-realismo à pintura moderna”.
Sam tem o mesmo diagnóstico quanto ao perfil dos compradores de sua arte. “O Pelourinho vive do turismo. Baiano não compra arte, manda fazer”.
Entre as encomendas que recebe de conterrâneos, estão, além de retratos, esculturas de orixás, mas ele aposta mesmo é nos souvenirs, as pequenas telas coloridas ou pinturas em madeira com temáticas baianas que cabem com facilidade nas malas dos visitantes, mesmo os que saem carregados de outras lembranças. “Quando o turismo acaba, acaba também o nosso ganha-pão”.
Cadeia de consumo
O início da pandemia foi, claro, um período muito difícil, em que esse ganha-pão ficou mais complicado. “A arte está em último lugar na cadeia de consumo. Primeiramente, vem a comida, a bebida, a curtição. A arte tem aquela coisa de estar no último degrau”.
Sam, que se encantou com a pintura aos quatro anos, quando foi ao Pelourinho acompanhado do pai, meteu na cabeça que queria ser artista. Mas acha que esse é um caminho que está sendo borrado no futuro.
“Antigamente, tinha os meninos que queriam ser discípulos dos artistas. Quando eu era menino, tinha uma galeria aqui e eu parava para ficar olhando. Mas isso está acabando”.
Se a decisão de ser artista é individual, a manutenção do sonho de viver da arte passa constantemente pelo apoio do poder público. Com um ateliê na Rua Gregório de Mattos, L. Folgueira reclama da falta de sintonia entre órgãos dos governos federal, estadual e municipal que são responsáveis pelo Centro Histórico.
O artista evita dar um componente político aos desencontros entre Iphan, Conder e Prefeitura Municipal e avalia que é uma questão de longa data. “Existem diretrizes excelentes, mas há um problema estrutural para fiscalizar e se fazer cumprir”, afirma.
O fato é que se cabe ao Iphan cuidar do patrimônio físico do maior conjunto colonial da América Latina, a administração das praças fica a cargo da Conder e a limpeza, por exemplo, cabe ao executivo municipal.
Folgueira sente falta de uma administração compartilhada, que chama de Tríplice Aliança. “Uma gestão única, tendo o Centro Histórico como uma exceção, seria algo a se pensar”.
O artista considera que a estrutura de governo voltada para o Pelourinho não cresceu na mesma medida das necessidades que foram surgindo ao longo dos anos. “Associado a isso, temos problemas sociais que dificultam uma ação mais imediata”.
Como estratégias para atrair o público soteropolitano ao bairro, acredita que a solução é a criação de um calendário permanente com eventos no mesmo nível da Festa Literária Internacional do Pelourinho, a Flipelô, que tem um público cativo interessado em livros e conta com uma divulgação consistente, capaz de mobilizar a população.
“A Flipelô inclui rotas gastronômicas, das artes e outras, sem contrapartida financeira alguma. Todos são beneficiados, especialmente o público”.
Por enquanto, o seu ateliê se mantém graças ao turismo. Pelos seus cálculos, 98,6% do seu faturamento em 2021 veio de visitantes, especialmente europeus. Mas vê chances de isso mudar com a atração de baianos ao local. “Salvador é carente desse tipo de evento, quando há, os soteropolitanos comparecem”.