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‘Cinema é sucateado porque somos vistos como ameça’

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Um ator vive muitas vidas – no palco, na grande tela do cinema ou nas telas menores dos televisores. Com apenas 22 anos, Christian Malheiros já perdeu a conta de quantas vidas já viveu em todos esses meios. Atualmente no streaming com a série Sintonia (renovada pela Netflix em novembro para um terceira temporada), o jovem teve um percurso fora do comum para os moldes brasileiros.
Após anos no teatro vivendo peças como Medéia e Fedra, o santista deu um passo para frente das câmeras com uma estreia que circulou no circuito independente do Brasil até chegar em públicos estrangeiros. Com Sócrates (Alexandre Moratto, 2018), Christian foi indicado ao prêmio de atuação do Independent Spirit Awards, ao lado de Ethan Hawke e Joaquin Phoenix.
Desde então, ele nunca mais parou — e nem planeja.
Seja em Sintonia, seja em 7 Prisioneiros, Sócrates ou Sessão de Terapia, parece haver uma preocupação social bem clara no seu portfólio. Essa é uma decisão consciente sua?
Eu só faço trabalhos que me brilham os olhos. O cinema no Brasil cumpre uma função social além do entretenimento. Isso é algo que eu me pego pensando na hora de fazer um trabalho, de ler um roteiro… E sobre esses personagens, que estão a margem, busco trazer uma reflexão. O meu trabalho como ator é sempre trazer o dilema, trazer a humanização desses personagens. Gosto de fazer com que o público se identifique de várias formas e que tire suas conclusões. Nem todo mundo é vilão e nem todo mundo é mocinho. Em 24 horas do nosso dia, a gente pode ser tudo, do carrasco à melhor pessoa do mundo. O dilema tá na vida de todo mundo. A gente precisa entender em 360 graus o que é a vida dessas pessoas. E são personagens complexos, que estão fazendo escolhas, por menor que seja o nível de escolhas que eles têm. Eles estão escolhendo um caminho. Essa trajetória é a luta da sobrevivência.
Como foi trilhar esse percurso em 7 Prisioneiros, seu projeto mais recente e no qual seu personagem passa por um percurso espinhoso?
Esse roteiro foi escrito para mim. Peguei esse personagem quando ainda tava no argumento, então eu já tava pirando com a história antes mesmo do roteiro ganhar corpo. Fiquei me perguntando muito se eu conseguia dar conta disso. É um lugar tão pesado, tão difícil. Estamos falando de trabalho análogo à escravidão, pessoas trabalhando em confecção de peças por 25 centavos. E essa peça é vendida numa loja a R$ 600. É um mercado que movimenta milhões de dólares e pessoas, e isso tudo acontece debaixo do nosso nariz. Você acha que é uma situação super dramatizada, mas conhece essas pessoas e vê que é algo tão fundo, é um abismo tão grande. É preciso ter respeito também a essas pessoas.
Sua carreira no cinema tem tido uma projeção internacional fora da curva para o cinema brasileiro. Você foi indicado ao Independent Spirit Awards por Sócrates, e 7 Prisioneiros esteve no festival de Veneza. Como foram essas experiências fora do Brasil?
Eu fui para o Spirit. Em Veneza, não consegui ir por conta da pandemia. Mas a experiência que tive com Sócrates em outros festivais foi surreal. Esse filme tinha um apelo internacional muito forte, uma vida, as pessoas se identificavam. Ele tem uma língua universal, e é muito bom quando você consegue se comunicar com pessoas de outras nacionalidades. Essa experiência é maravilhosa para mim porque é sinal de que a gente tá gritando aqui e eles estão ouvindo lá. Os outros entendem o que estamos passando aqui, assim como a gente simpatiza com a realidade americana ou europeia pelo cinema. 

O cinema no Brasil cumpre função social além do entretenimento. Isso é algo que eu me pego pensando

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  Você atua desde a infância no teatro e, nos últimos anos, sua carreira tem tido uma trajetória fora do comum. A visibilidade no Brasil costuma se dar através das novelas, e não com cinema e TV a cabo. Essas também são decisões conscientes suas?
Eu acho que não teve escolha, foi sempre a agenda que escolheu. Quando comecei a fazer streaming, cinema independente, uma coisa foi grudando na outra. Surgiram alguns convites para fazer novela, mas foi algo que acabou não rolando. Eram projetos que não conheci a fundo porque já tinha a negativa da agenda. Mas não tenho nenhum problema, não é uma questão para mim. Se a história for boa e me brilhe os olhos, se eu me sentir necessário lá, com toda certeza eu estarei lá.
Como você acha que sua experiência no teatro moldou tanto sua atuação quanto sua forma de trabalhar?
O teatro é minha grande escola. Foi lá que eu aprendi a ser ator, que eu tive consciência do meu corpo, que eu conheci o público. Acho que aprendi muitas coisas. No teatro, a gente trabalha a profundidade, a versatilidade das escolhas, a humanização das figuras. A gente vai lendo o texto, entendendo e achando links ali para que você consiga sempre colocar uma coisa sua na atuação. O ator sempre coloca algo de si, não necessariamente das situações que já viveu, mas das sensações e emoções. Isso faz toda diferença na minha leitura de texto, em como eu encaro o personagem. É a minha técnica, onde aprendi a canalizar minha energia para transmitir uma verdade que é a mesma, seja no palco ou no cinema. 

  
Na série Sintonia, você é o único ator negro do trio de protagonistas, e o seu personagem é o que mais se envolve com o mundo do crime. Onde você acha que está a linha entre fazer uma crítica social e perpetuar estereótipos?
É uma linha muito tênue, que está marcada na falta de incentivo a ter roteiristas, diretores pretos, LGBTs… A gente precisa de uma base de LGBTs, um núcleo de roteiristas pretos para desenvolver os projetos. Senão, vai sempre cair no estereótipo. Podem dizer “ah, é a realidade como ela é”, mas não é só isso que nós queremos. Chega de, na ficção, pessoas pretas não terem famílias, só terem histórias tristes. Você vê muito as empresas se posicionando, dizendo “black lives matter”, mas e aí? O que está sendo feito para contribuir? Que projetos estão sendo desenvolvendo? Que roteiristas são contratados? Isso tudo tem que ser questionado. Você vai para o set de filmagem, e cadê a representatividade na equipe? Isso tá lá no começo, quando o projeto é concebido.  A gente pode fazer uma crítica social e tirar os estereótipos, basta colocar quem tem o poder de fala, o conhecimento desses assuntos.
Dada a constante no seu trabalho em lidar com temáticas sociais, você considera que dar um holofote e discutir a esses temas faz parte da responsabilidade do artista?
O artista é um cidadão como qualquer um outro, seu papel é político e social. Mas ele não precisa falar do jeito que as pessoas querem que fale, com textão no Instagram. Eu cumpro meu papel fazendo um filme sobre trabalho análogo à escravidão, fazendo uma série sobre periferia. Eu converso com minhas sobrinhas, ensino a elas o que é racismo, o que é machismo. Eu gosto de ações efetivas. Não que a postagem digital não seja, mas eu prezo pela minha forma de falar. Tem o artista que tá se expressando na internet, tem o artista que tá movimentando de outra forma, mas ele está falando de qualquer jeito. 

Ao trabalhar para streaming e TV, você trabalha para quem injeta dinheiro e tem suas prioridades

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 Nos últimos anos, tem havido um sucateamento muito grande no setor cultural, principalmente na área do audiovisual. Como alguém envolvido em projetos que são menos mainstream, como você vê o futuro desse cenário?
O cinema tá sucateado, tá parado, a gente tá trabalhando com streaming e com televisão para pagar as contas. Isso é ótimo, mas o cinema independente precisa existir. Quando você trabalha para streaming e TV, você tá trabalhando para um cliente que injeta dinheiro, que tem suas prioridades. Você precisa atender às expectativas. No cinema independente, a narrativa, a escolha do elenco, as escolhas narrativas, isso tá na mão do diretor. A pandemia agrava tudo isso, mas a gente sempre vai renascer. E sabe por que o cinema é sucateado? Porque somos vistos como uma ameaça, e realmente somos uma ameaça ao pensamento retrógrado, ao racismo, à homofobia, à falta de educação. Se somos uma ameaça, então vamos agir como uma ameaça.
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.