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Crônica – Da espaçonave para as latinhas de atum

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Já andei de nave espacial. Era confortável e espaçosa. Eu era criança e via assim a viagem de avião. Havia mantas felpudas à disposição para nos cobrir enquanto nos recostávamos em assentos reclináveis. Lembro do cardápio que recebíamos para escolher a refeição – marcava no papel se preferia peixe, frango ou carne. Sim, almoçávamos e jantávamos no voo, e nem era primeira classe. 
Hoje, se o acesso às viagens aéreas foi aumentado, a qualidade do serviço só encolheu. Quase não há espaço para as pessoas, quem dirá para as bagagens. Lanche só se você pagar ou levar – na pandemia, nem isso mais. Qualquer dia vão cobrar pela quantidade de oxigênio que você respira durante o trajeto. Não duvide. O que não se cobra, hoje em dia?
Em novembro, fiz uma viagem a Fortaleza, após algum tempo sem me arriscar pelos ares. Me senti em uma lata de atum dentro daquele único corredor comprido e apinhado de gente. Três poltronas de um lado, três de outro. O espaço entre elas, cada vez mais reduzido. Conforto é uma palavra deixada para trás na fila do embarque. 
Em um momento do voo, a mulher que estava ao lado da minha vizinha de assento precisou levantar para ir ao banheiro. Não é exagero dizer que ela sentou no colo da outra para conseguir passar – para a sorte delas, eram amigas. A minha sorte foi estar posicionada no corredor e poder levantar para deixá-la passar. De outro modo, seria um atum espremido na latinha. 
Ao chegar ao aeroporto de Fortaleza, recebo mensagem do meu marido, a quem esperava que chegasse pouco depois em outro voo. Ele me contava da fila de mais de uma hora antes de sair de Salvador que o fez perder a conexão em Recife. Só chegaria à noite. Na capital pernambucana, tamanha desorganização na área de embarque o levou a entrar no universo paralelo da aviação: por pouco, não foi parar em Porto Alegre. Ouviu o sotaque gaúcho dominar as conversas a tempo de descer e pegar a aeronave certa.
Voar de avião deixou de ter o brilho que eu via na infância. Confesso que pensar em aeroportos, malas, taxas de embarque e voos até me desanima. Viajar é muito bom, mas nada paga o conforto de estar em casa com os pés sobre o chão e as roupas arrumadas no armário. Ah, adultos!
Aonde vai parar a magia da infância, quando vemos tudo com olhos de encanto e animação? Imagino ter ficado retida em alguma alfândega com fuso horário diferente, no meio do caminho. Ser adulto é como se dar conta de que não estamos viajando em uma nave espacial, mas, sim, numa lata de atum apertada. 
A sensação, nesse mundo, é de que está todo mundo tentando levantar para ir ao banheiro, mas não tem espaço livre pra passar. Aí você fica ali avaliando se é melhor segurar e esperar o fim da viagem, passar por cima do passageiro ao lado ou tentar descobrir outra alternativa, ninguém sabe qual. 
Vá lá: tem muita paisagem pra admirar olhando de cima. Tem muita região bonita pra percorrer, caminhando por baixo. O mundo está aí pra quem quiser enxergar suas maravilhas. Sim, às vezes, o voo vai lotado, não tem refeição, o serviço de bordo deixa a desejar. E, principalmente: não há garantias. Já é sorte se você não tiver embarcado na nave errada.
Ainda assim, viver vale os perrengues para usufruir o melhor que há fora dos portões de desembarque. Uma vez na aeronave em pleno voo, não dá pra pedir pra descer. É preciso aproveitar a viagem.