Quando se pensa nos livros de Elena Ferrante, para além das questões temáticas envolvendo a vida feminina, a cidade de Nápoles é também uma constante importante, a partir de um contexto social complexo e com certa degradação que se reflete nos conflitos morais dos personagens. No caso de A Filha Perdida, filme lançado na Netflix, a diretora norte-americana Maggie Gyllenhaal retira tal ambientação – o filme se passa na costa da Grécia, quase todo falado em inglês, com elenco majoritariamente anglófono.
Essa é uma das licenças poéticas que a agora cineasta tomou ao adaptar a trama do livro, o segundo lançado pela misteriosa escritora – que até hoje não teve a sua real identidade revelada publicamente –, antes de conhecer o sucesso com a sua tetralogia napolitana (série de livros que virou febre entre os leitores anos atrás).
Mas é possível dizer que, fora a ambientação, Gyllenhaal faz uma adaptação fiel à história da professora de meia-idade que vai passar as férias na praia e conhece uma outra família, em especial uma jovem mãe que passa por conflitos de maternidade e sente-se deslocada naquela posição.
Olivia Colman é quem vive a turista Leda, mulher que vamos entender melhor a partir da sua relação com a jovem Nina (Dakota Johnson), mas também através dos flashbacks que mostram a sua juventude quando ela mesma era uma jovem mãe, afogada pelas exigências da maternidade e tentando manter uma carreira acadêmica, tendo em vista sua clara competência intelectual.
O filme se concentra entre passado e presente para refletir sobre o peso da maternidade na vida das mulheres e ainda discute as difíceis relações entre mães e filhas, algo que já era presente no livro anterior da Ferrante, Um Amor Incômodo, e que vai aparecer em outros trabalhos futuros também.
Ou seja, não há como dissociar as histórias da escritora a esses temas, e A Filha Perdida cumpre bem o papel.
Mães desconstruídas
Certamente uma das grandes qualidades do filme é a maneira como a história se propõe a desconstruir uma visão de endeusamento da figura materna – algo que o cinema, a televisão e a mídia em geral massificaram como coisa sagrada, inquestionável e que representaria a própria essência do feminino (a ideia de “padecer no paraíso”, como diz o ditado, é parte disso), tal como uma imposição social a recair sobre todas as mulheres.
Se Leda observa a jovem Nina tendo de lidar desconfortavelmente com a filha pequena dentro de um universo familiar um tanto repressor – sua cunhada, grávida, lhe dita ordens e está a todo instante lhe dizendo como cuidar da filha, enquanto o marido tem ares de malandrão, tão jovem quanto ela, aparentemente metido em negócios estranhos e nem sempre presente no cotidiano familiar –, a própria professora irá confrontar o seu passado similar em que a maternidade se tornou um peso, algo para o qual ela não parecia ainda estar destinada.
O intuito aqui é mostrar que essas mulheres podem romper com tais imposições, mas não sem antes sofrer consequências e carregar culpas e traumas por toda a vida por causa disso. O descortinar da história de Leda é bastante significativo nesse sentido. Nos flashbacks, em que ela é interpretada por Jessie Buckley, veremos que o ideal de maternidade não lhe cabe, mas como se desvencilhar disso tendo duas filhas pequenas para criar? Vale destacar que para ambas, o descrédito e a falta de apoio dos seus maridos pioram ainda mais toda a situação.
Ainda assim, há de se notar que todas essas questões e nuances fazem parte do material original, das obsessões temáticas da Ferrante como escritora. Ao filme, falta percebermos a mão e uma visão mais apurada da cineasta para tais situações e questões. Gyllenhaal prefere, claramente, fazer uma adaptação que seja muito fiel ao livro (ela assume sozinha a escrita do roteiro do filme), mas nesse processo acaba sendo muito mais protocolar do que necessariamente autoral na sua construção cinematográfica.
É claro que essa não é uma opinião das mais populares. O filme estreou ano passado no Festival de Veneza e saiu de lá com um incrível prêmio de Melhor Roteiro. Claramente, este é mais um mérito da Ferrante do que propriamente da cineasta-roteirista.
Espelhamento
Outro recurso que desgasta um pouco a história – e esse faz parte do livro, o que o enfraquece também enquanto narrativa – é que a relação entre Leda e Nina é por demais óbvia e mastigada na trama.
Leda enxerga em Nina a jovem que um dia ela foi – e que teve a coragem de cometer um ato para muitos questionável, inclusive para ela mesma. Isso lhe provoca certas cicatrizes que voltam à tona ao conhecer a jovem com problemas parecidos com os dela, um jogo de espelhamento que vai revelar muito da personalidade conflituosa de Leda, da mulher e mãe que ela reconhece ser atualmente. Aqui vale destacar o trabalho incrível de Colman que nunca se entrega ao exagero ou às afetações dramáticas, ainda que sua atuação reflita sentimentos intensos da personagem.
A facilidade desse recurso de pareamento entre as duas mães revela-se um tanto pobre e fácil demais, porque o filme deixa clara tal relação logo no início da trama, mas segue demarcando-o apenas para levar a história adiante. Em contraponto, Leda acaba conhecendo dois homens distintos nessa viagem: o senhor que aluga a casa em que ela fica hospedada (interpretado por Ed Harris) e um simpático jovem local (vivido por Paul Mescal). Com ambos mantém boas e confidenciais conversas, sem que o filme precise cair no lugar comum das aproximações amorosas entre eles.
As trocas que se estabelecem entre os personagens todos não são nada previsíveis e simples, especialmente a partir das atitudes de Leda em relação aos problemas enfrentados por Nina. Leda é mesmo capaz de cometer certas crueldades, mantendo quase como em um jogo de aparências suas atitudes, esperando as consequências, enquanto repassa a sua vida e enfrenta os seus fantasmas.
No final das contas, são todas elas filhas e mães perdidas nos seus próprios traumas, buscando saídas – sobretudo para certas amarras sociais.
Essa é uma das licenças poéticas que a agora cineasta tomou ao adaptar a trama do livro, o segundo lançado pela misteriosa escritora – que até hoje não teve a sua real identidade revelada publicamente –, antes de conhecer o sucesso com a sua tetralogia napolitana (série de livros que virou febre entre os leitores anos atrás).
Mas é possível dizer que, fora a ambientação, Gyllenhaal faz uma adaptação fiel à história da professora de meia-idade que vai passar as férias na praia e conhece uma outra família, em especial uma jovem mãe que passa por conflitos de maternidade e sente-se deslocada naquela posição.
Olivia Colman é quem vive a turista Leda, mulher que vamos entender melhor a partir da sua relação com a jovem Nina (Dakota Johnson), mas também através dos flashbacks que mostram a sua juventude quando ela mesma era uma jovem mãe, afogada pelas exigências da maternidade e tentando manter uma carreira acadêmica, tendo em vista sua clara competência intelectual.
O filme se concentra entre passado e presente para refletir sobre o peso da maternidade na vida das mulheres e ainda discute as difíceis relações entre mães e filhas, algo que já era presente no livro anterior da Ferrante, Um Amor Incômodo, e que vai aparecer em outros trabalhos futuros também.
Ou seja, não há como dissociar as histórias da escritora a esses temas, e A Filha Perdida cumpre bem o papel.
Mães desconstruídas
Certamente uma das grandes qualidades do filme é a maneira como a história se propõe a desconstruir uma visão de endeusamento da figura materna – algo que o cinema, a televisão e a mídia em geral massificaram como coisa sagrada, inquestionável e que representaria a própria essência do feminino (a ideia de “padecer no paraíso”, como diz o ditado, é parte disso), tal como uma imposição social a recair sobre todas as mulheres.
Se Leda observa a jovem Nina tendo de lidar desconfortavelmente com a filha pequena dentro de um universo familiar um tanto repressor – sua cunhada, grávida, lhe dita ordens e está a todo instante lhe dizendo como cuidar da filha, enquanto o marido tem ares de malandrão, tão jovem quanto ela, aparentemente metido em negócios estranhos e nem sempre presente no cotidiano familiar –, a própria professora irá confrontar o seu passado similar em que a maternidade se tornou um peso, algo para o qual ela não parecia ainda estar destinada.
O intuito aqui é mostrar que essas mulheres podem romper com tais imposições, mas não sem antes sofrer consequências e carregar culpas e traumas por toda a vida por causa disso. O descortinar da história de Leda é bastante significativo nesse sentido. Nos flashbacks, em que ela é interpretada por Jessie Buckley, veremos que o ideal de maternidade não lhe cabe, mas como se desvencilhar disso tendo duas filhas pequenas para criar? Vale destacar que para ambas, o descrédito e a falta de apoio dos seus maridos pioram ainda mais toda a situação.
Ainda assim, há de se notar que todas essas questões e nuances fazem parte do material original, das obsessões temáticas da Ferrante como escritora. Ao filme, falta percebermos a mão e uma visão mais apurada da cineasta para tais situações e questões. Gyllenhaal prefere, claramente, fazer uma adaptação que seja muito fiel ao livro (ela assume sozinha a escrita do roteiro do filme), mas nesse processo acaba sendo muito mais protocolar do que necessariamente autoral na sua construção cinematográfica.
É claro que essa não é uma opinião das mais populares. O filme estreou ano passado no Festival de Veneza e saiu de lá com um incrível prêmio de Melhor Roteiro. Claramente, este é mais um mérito da Ferrante do que propriamente da cineasta-roteirista.
Espelhamento
Outro recurso que desgasta um pouco a história – e esse faz parte do livro, o que o enfraquece também enquanto narrativa – é que a relação entre Leda e Nina é por demais óbvia e mastigada na trama.
Leda enxerga em Nina a jovem que um dia ela foi – e que teve a coragem de cometer um ato para muitos questionável, inclusive para ela mesma. Isso lhe provoca certas cicatrizes que voltam à tona ao conhecer a jovem com problemas parecidos com os dela, um jogo de espelhamento que vai revelar muito da personalidade conflituosa de Leda, da mulher e mãe que ela reconhece ser atualmente. Aqui vale destacar o trabalho incrível de Colman que nunca se entrega ao exagero ou às afetações dramáticas, ainda que sua atuação reflita sentimentos intensos da personagem.
A facilidade desse recurso de pareamento entre as duas mães revela-se um tanto pobre e fácil demais, porque o filme deixa clara tal relação logo no início da trama, mas segue demarcando-o apenas para levar a história adiante. Em contraponto, Leda acaba conhecendo dois homens distintos nessa viagem: o senhor que aluga a casa em que ela fica hospedada (interpretado por Ed Harris) e um simpático jovem local (vivido por Paul Mescal). Com ambos mantém boas e confidenciais conversas, sem que o filme precise cair no lugar comum das aproximações amorosas entre eles.
As trocas que se estabelecem entre os personagens todos não são nada previsíveis e simples, especialmente a partir das atitudes de Leda em relação aos problemas enfrentados por Nina. Leda é mesmo capaz de cometer certas crueldades, mantendo quase como em um jogo de aparências suas atitudes, esperando as consequências, enquanto repassa a sua vida e enfrenta os seus fantasmas.
No final das contas, são todas elas filhas e mães perdidas nos seus próprios traumas, buscando saídas – sobretudo para certas amarras sociais.